Hoje acordei estranho, com um asfixiante nó que me magoava a garganta e sentimentos intensos de angústia e melancolia tomavam-me o corpo e a mente. Aos poucos, pequenos lampejos de memória me foram inundando e trazendo à realidade.
Finalmente acordado forcei-me a recordar o, daquela noite, sonho, principal responsável pelo aparecimento destes sentimentos.
São Pedro, ano de 1970/71.
O dia, tal como os outros anteriores, nesta época do ano, acordou gelado. Um cheirinho a café recém-preparado, na pequena panela de ferro que repousava nas brasas, perto da chaminé, fez-me crescer água na boca e a larica que já começava a bater à porta, obrigou-me a levantar mais rapidamente. Calças enfiadas, por cima das ceroulas que a noite a isso obrigava, camisa vestida, com camisola de lã por cima e cara lavada, deixaram-me preparado para sair à rua e tratar das primeiras necessidades, no palheiro logo ali, a uma dezena de metros da casa. Aliviado e já no regresso um cheirinho a pão torrado, barrado com marmelada caseira, preparado pela tia Cremilde abriu-me ainda mais o apetite.
A avózinha Leopoldina sentada “ao lume", no seu banquinho de três pés, feito de madeira talhada à mão, envergando os tradicionais trajes negros, imagem de todas as viúvas das aldeias das Beiras, recebeu-me com um sorriso, única expressão aliás que sempre lhe conheci. Um beijinho à Avó, à Cremilde e à minha mãe, antecederam o devorar aquela iguaria que me estava destinada. Por esta altura já o meu irmão também por ali cirandava, nos seus preparos. Mala com os livros e cabaz onde residia o almoço para esse dia, compunham todos os apetrechos necessários para mais um dia de aulas. Um copo de fresca água, tirado de uma cântara do basal e preparado para o caminho. Uma luminosidade cegante que nos obrigava a semi-cerrar as pálpebras, recebeu-nos no trajecto até ao ponto onde todos os alunos, do secundário, esperavam a “ramona”, pequena camioneta de uma vintena de lugares que percorria as aldeias para transportar os alunos para e do Externato Frei Bernardo de Brito, em Almeida. Os flocos de neve puxados a vento eram, eles também, motivo para tal.
-“Bom dia ti Manel”, cumprimento apressado feito ao Ti Manel da Ti Felicidade, vizinhos da minha avó.
- “Olá Tózé”, que tenhas um bom dia rapaz.
O chão gelado obrigava-nos, por vezes, a verdadeiros movimentos de equilíbrio circense, o que para nós, rapaziada, não deixava de ser mais um motivo de brincadeira e risota. O telhado da capela estava decorado com enormes “círios” de gelo que lhe desciam das telhas, quase tocando o chão. Alguns deles, perfeitas espadas com que imitávamos os piratas ou o zorro ou deliciosos chupa-chupas com que nos deleitávamos.
Para aquecer e dado que, por vezes, já por lá andava o Zé Manel Teixeira, antes de seguir para a sua jornada, patinava-mos um pouco no lavadouro das mulheres, que por aquela altura se encontrava completamente gelado, conseguindo desse modo, mais algumas nódoas negras, para juntar à já vasta colecção que possuíamos.
A “Ramona” nada de chegar. Como abrigo, ao agreste vento, valia-nos a protecção da cruz, uma das que compõem a Via-Sacra da nossa aldeia, e que se situa no largo do chafariz da capela, ali mesmo à entrada do caminho das Veigas ou Enchura.
Entretanto chegavam o Domingos e o Adalberto, nessa altura dois dos meus paladinos e fiéis protectores, porque era a eles que recorria quando o Canário de Vale da Mula, que tinha um prazer especial em me “cascar”, me começava a zurzir as orelhas, mas isso são outras conversas, que a seu tempo vos poderei aqui trazer.
Eis que chegada, finalmente, a “ramona”. Lá para dentro e a fazer o caminho para o colégio. Entretanto e após passagem pelas Naves o trajecto passava por Vale da Mula onde habitava um dos meus maiores amigos desses tempos, o Hernâni, irmão da futura, doutora Teresa, que viria a leccionar no externato, mas que nesses tempos, estudava no referido estabelecimento e para mim, mais não era do que uma irmã mais velha e que tratávamos por “Fina”.
Era ela pois que, com enorme carinho e paciência para comigo e seu irmão, nos aquecia o comer no refeitório do externato e que estava sempre atenta a que o fizéssemos, a tempo e horas, em vez de passarmos o tempo a brincar.
Tudo se torna mais claro. Acordei. O sonho desta vez termina aqui mas não as memórias e recordações, das quais vos darei conta, se o engenho e arte me bafejarem com o seu dom e se vós caros leitores, tiverdes tempo e paciência para me ler.
Um forte abraço
PS: Externato Frei Bernardo de Brito - Soube agora que esse pedaço tão importante do meu passado foi demolido em Janeiro do corrente. Naturalmente que foi com profunda tristeza que recebi essa notícia. Contudo se bem que tenha desaparecido fisicamente, ficará para sempre guardado no coração e na memória de tantos nós que por esse estabelecimento passámos e onde adquirimos alguns dos alicerces com que norteamos a nossa vida.
Citrus Sénior
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